A profecia de Adolf Loos se cumpre: "Por culpa do arquiteto, a arte de construir vem se degradando e se convertendo em uma arte gráfica". Essa desmaterialização vem crescendo ainda mais com as novas técnicas de representação e simulação baseadas em imagens virtuais. Perde-se enquanto cidade de relações humanas, ganha-se enquanto sistemas de redes materiais e imateriais do ambiente urbano.
Em Salvador, Fernando Peixoto foi quem melhor soube aproveitar essa tendência da arquitetura contemporânea, assumindo seu caráter gráfico e atuando no meio urbano como uma realidade em que desapareceu a preocupação com o lugar. Cidade que se faz de monumentos fechados em si mesmos que tentam firmar uma identidade própria e individual. É nesse contexto que seu trabalho adquire status de arquitetura do espetáculo.
Quando atua como designer do mercado imobiliário, sua produção é personalizada, tendo como base um usuário genérico. Ele estabelece uma identidade arquitetônica própria frente à neutralidade do espaço urbano. Dissocia a fachada de um edifício de apartamentos ou prédio de escritórios de seus compromissos com a abertura dos muros. Transforma a caixa exterior em pura expressão plástica, marcada por faixas e cores em escala urbana, criando sensações visuais de dobras e sombras, onde a princípio existem somente planos simples e lisos, usando a arquitetura como um recheio.
O êxito dessa arquitetura está na superfície que limita o interior e o exterior. Internamente, o arquiteto organiza plantas que atendem aos anseios do mercado; externamente, dissimula o conteúdo sob um efeito gráfico, uma roupagem que garante o sucesso do empreendimento, mesmo comprometendo a iluminação natural dos interiores, dificultando o agenciamento dos espaços, escravizando os ambientes. Um sistema gráfico que vem evoluindo nas sucessivas e superpostas experiências construídas. O próprio arquiteto não sabe onde chegará, mas já percebe o “barroquismo” do Centro Empresarial Previnor.
Quando atua como “amigo do rei”, como afirma o próprio Peixoto, no caso da residência Félix de Almeida, a simulação de cubos urbanos se transforma em espaço de fato. Aqui existe um cliente real, com manias, desejos e sonhos, para o qual o arquiteto projeta. Nesses projetos, já não são necessários os vários tons de cinza e cores vibrantes para criar grafismos e efeitos visuais; ao contrário, exploram-se as sombras naturais de volumes sobre o plano das fachadas.
Mas seu interesse é polemizar. Nesse sentido, o projeto da marina é um prato cheio a suscitar polêmica dentro dos órgãos que legislam sobre o espaço urbano de Salvador. Trata-se de uma intervenção urbana em zona histórica, cuja delicada situação determinou amplo estudo de visuais do entorno. Para o arquiteto, uma proposta capaz de dinamizar o decadente bairro do Comércio graças à grandiosidade da intervenção, com volumes identificáveis, à Fernando Peixoto. Um novo pedaço urbano que se acoplaria à encosta da cidade, onde a arquitetura seria uma conseqüência.
Críticos, acadêmicos e arquitetos baianos se surpreendem com a superficialidade dessa arquitetura, por não conseguirem ser inovadores dentro do vazio experimentado pela falta de uma modernidade plena. Uma arquitetura que se concretiza no efêmero, constantemente negada pela vanguarda, reafirmando-se como ícone dessa nova cidade gerada segundo leis de mercado.
Impermanência de memória
Na relação proposta memória/inconsciência X esquecimento/consciência, se encontra, talvez, um dos elementos urbanos que diferencia a personalidade brasileira de suas cidades das demais. A mobilidade, que muitas vezes é confundida com desordem. Uma característica que marca não somente o modo de ser urbano em Salvador, como também a impermanência de uma cultura da memória.
"A imobilidade, que permite o conhecimento, esquece a vida", ao passo que a mobilidade a reafirma. Uma cidade nova, uma cidade viva tende a ser uma cidade sem memória, ou seja, uma cidade que não se reafirma na estagnação de seus elementos, isso considerando a visão moderna de manter o esforço de recuperação da experiência do passado. Sua história é curta, sua busca é longa. Em contraposição, temos as cidades ricas de memória. Memórias tão fortes em suas histórias que as imobilizam. Assim ocorreu com a inesquecível cidade de Zora, que, por permanecer imóvel, se esvaiu.
A rigidez de perdurar na consciência faz com que sua existência se dissolva dentro de sua própria contradição, passando a ser à de um elemento morto. A cidade passa a reafirmar-se pelo culto ao passado, recriado na direção de tradições futuras. Saudade de futuro.
A nova ordem mundialA mobilidade das cidades brasileiras, caso específico de Salvador, faz com que a cidade mantenha-se viva e mutável. “Aqui tudo parece que é construção e já é ruína... Nada continua”. Um movimento que deixa de fora a cultura oficial e se reafirma nas periferias vivas, mutáveis. “Algo está fora da ordem, fora da nova ordem mundial”.
Salvador, uma das mais modernas cidades brasileiras, na opinião do geógrafo Milton Santos, ao considerar o fato de a cidade haver dado as costas para a cidade existente, reerguendo-se em um novo centro de negócios e serviços, independentemente do primeiro. Este novo espaço-cidade sem passado, seja por decisões políticas ou por necessidades físicas (não é o que importa), continua latente em sua maneira de existir. O tempo não se perde, mas também não se acumula. O que se tem é vida em seu instante.
A mesmo tempo que a cidade perde sua memória a cada dia, constitui uma vida nova a cada momento. Vive da produção de novas idéias que se somam no dia a dia do esquecimento. Recria-se sem a intenção de perdurar. Sustenta-se no novo e casual que muda a todo instante. Uma cidade rica em culturas emergentes e passageiras. Aqui, o folclore não se apoia na canonização de um rito; ao contrário, ele se revitaliza em suas adaptações no tempo, agregando novos elementos a cada instante, uma cultura forte, uma cultura insustentável, superficial. A memória estática não interessa. A memória que fica é transformada pela consciência, e o esquecimento a absorve. A identidade se reinventa todo dia. Falo que o academicismo de Edmilson Carvalho, ao analisar Hildegardes Vianna, não chega a compreender.
Memórias inconscientesA cidade se movimenta. Ela se desestrutura enquanto centro, deslizando pelas cumeadas: Terreiro, Pelourinho, Rua Chile, Politeama, Lapa... Iguatemi, sem uma preocupação com o que ficou construído no tempo. Momentos de prestígio distintos que deixam suas marcas construídas. Um espaço a ser reinventado por quem o reabilite. Espaços urbanos que, passados seus momentos áureos, são esquecidos enquanto ambientes a serem vividos por quem os concebeu e passam a fazer parte dessas inconscientes memórias. Na mobilidade urbana, falar de patrimônio é falar de uma tentativa institucional, pois nesta ambiência viva de produção cultural não resta espaço para que se cultue o passado ou, melhor dito, não se faz necessária a manutenção de uma memória dentro da emergência desse tipo de produção cultural.
Esta análise se reenfatiza quando se observa o estado dos arquivos públicos. Em um artigo do jornal A TARDE, “Salvador, uma cidade sem memória”, evidencia-se o desleixo que esses documentos sofrem no decorrer de sua existência. Um material quase em sua totalidade perdido nos sucessivos incêndios que sofreram os arquivos públicos da cidade. Os que resistiram estão guardados nos úmidos sótãos de antigas construções. Para a cultura preservacionista ocidental, é difícil compreender tais arbitrariedades com a vasta memória escrita. Entretanto, não existe uma intenção própria na cultura voltada para o preservar. Essa história passa a ser assunto para museu.
Enquanto se observa a proliferação de museus na Europa e EUA, uma cultura que se remonta a uma sólida cultura de passado, sendo considerada como a tipologia arquitetônica do fim de século (muito divulgada pelas revistas especializadas internacionais), no Brasil, particularmente na Bahia, passar a ser tema de museu é deixar de ser uma referência, enquanto vida, para pertencer ao cemitério dos assuntos de curiosidade do passado.
Trabalhando no vazioPostura coerente com um país que mergulhou de cara em seu inovador, em seu moderno, negando radicalmente a história. Preservar, no Brasil, é trabalhar no vazio. Faz parte de uma ilha institucional, uma busca arqueológica, que pretende sustentar uma história, ser pró-memória. A instituída restauração conforma o cenário simbólico a ser mantido como memória pela ordem dominante.
Desse modo, os museus não se sustentam pelo cidadão que compreende sua história, mas sim por um público que, por curiosidade, admira o passado. Os museus não são elementos de referência para a inovação da cultura existente, e sim respaldo institucional da memória oficial.
A força cultural baiana não surge do academicismo de sua intelectualidade, mas sim de sua periferia borbulhante. Uma cidade cheia de artistas, como disse Gerônimo. Artistas que não sabem conceituar sua arte ou não querem fazê-lo. Artistas que produzem arte sem o compromisso de perpetuá-la. Uma cidade tão pobre de críticos...
Críticos, acadêmicos, arquitetos que se surpreendem com a superficialidade da recente arquitetura baiana, por não conseguirem ser irresponsáveis e inovadores dentro do vazio experimentado pela falta de vivência de uma modernidade plena. Uma arquitetura que se concretiza no efêmero proposto por Fernando Peixoto, que, constantemente, é negada pela vanguarda e reafirmada como ícone desta nova cidade, possibilitada dentro das leis de mercado.
Esse movimento cultural, que tem hoje como expressão máxima a música, se sustenta na continuidade da mudança, onde tudo se experimenta e nada se consolida como verdade única, mantendo todas as origens e referências à sua disposição. A música é um espaço tecnicamente sofisticado, onde a mobilidade é permissível. A personalidade baiana exige uma dinâmica, que se encontra na música. Ou, quem sabe, talvez esteja na própria personalidade baiana a musicalidade. De qualquer sorte, uma cultura viva, mística, que emociona.
Fernando Peixoto, um sucesso gráfico
Convidado pelo Itamaraty para ser um dos dois representantes do Brasil na V Bienal de Arquitectura em Veneza, o arquitecto personalizada e própria. Um arquitecto que quer ser reconhecido como designer antes de tudo. Sua arquitetura, um espetáculo. Um trabalho muito criticado no início, mas hoje já se assume o poder que tiveram suas intervenções na cidade: plasticidade, grafismos e cores. A griffe Fernando Peixoto toma valor de destaque e seu nome passa a figurar como elemento de prestígio na hora da comercialização da construção, prática anteriormente nunca utilizada. O que esta arquitectura significa para ser capaz de suscitar tanta polêmica?
Salvador no contexto BrasilFundada para ser a capital da colônia Brasil, Salvador teve seu momento áureo no século XVIII, hoje com um centro antigo reconhecido pela UNESCO como patrimônio mundial do seu vasto centro barroco. Nos finais do século passado início deste, uma cidade de baixo crescimento frente às demais cidades brasileiras. Sofre o seu boom como cidade que dinamiza sua economia nos anos 60/70. Abre-se a novas áreas. Cresce, transforma-se.
Esta transformação seguirá a tendência da arquitectura brasileira, uma arquitectura que se fez moderna, a-história, universal. Fundamentos de uma arquitectura solidificada na forte corrente do positivismo, do progresso. É o edifício o grande contorno. Todo edifício passa a ter o potencial para ser um monumento. Perda da hierarquização da arquitetura dentro da cidade. Surge como proposta de um novo espaço para a cidade, a cidade do movimento, a cidade do circular. Para uns chamado de espaço residual por não formar o sentido de Lugar, para outros, espaço amorfo de um todo monumental dentro da democratização do construir. Para Sennett, uma conseqüência da linguagem que se aplica ao entorno, o desejo de ver o exterior como nulidade, algo carente de valor.
A arquitetura brasileira se afirmou na absorção e radicalização destas idéias. Somos a-históricos e criativos. Não só os nossos japoneses são geniais. Existe o compromisso brasileiro de assim sê-lo. Se fez realidade segundo os cânones de uma arquitectura que se dizia funcional e universal. Construiu-se uma utopia, pagou-se caro por ela, temo-la. Seu nome: Brasília. Um orgulho que transcende das críticas de sua própria existência, sustentando o selo: uma obra de arte moderna.
Só que o monumento não se faz por si só. O monumento é fruto do contexto urbano que o reafirma. Uma vez que se descontextualizam as referências, se homogeneiza o espaço. Espaço neutro que só é capaz de ser potencializado pelo consumo, ora na postura dos centros comerciais, ora como espaços limitados à experiência do turismo organizado como tal. Trivialização e redução da cidade como mero cenário suave para o cotidiano dentro do medo à exposição. Em Salvador, foi Fernando Peixoto quem melhor soube preencher esta nova necessidade do homem contemporâneo. Um dos motivos de seu êxito.
Arquitectura como suporteSalvador se faz sob estas influências. Inserido nessa realidade, Fernando Peixoto atua nesse contexto urbano, fazendo a releitura das vertentes arquitetônicas em voga. Uma realidade onde já desapareceu a preocupação pela qualidade do Lugar urbano, definindo-se, enquanto cidade, como espaços residuais de muitos marcos de referências, apenas arquitetônicos. Cidade que em seus crescimentos se faz de monumentos que tentam adquirir uma identidade própria fechados em si mesmos.
Querer dar uma personalidade a sua arquitectura, enquanto arquitecto, é o que leva Fernando Peixoto a ser um acontecimento dentro da imagem urbana. Uma personalidade de identificação. Sua proposta se otimiza frente às demais, que também buscam esta identidade, quando descobre a possibilidade de dissociar a fachada de um edifício de apartamentos ou salas de escritório de seus compromissos com as aberturas do muro. Transforma esta caixa exterior em uma pura expressão gráfica, de tamanho sublime, usando a arquitectura como um recheio, seu suporte.
Trabalha a fachada como expressão geométrica de faixas e cores em uma escala urbana. Não é a planta o que importa, pois esta seguirá sua função, entretanto será determinada pelo grafismo pretendido na fachada, elemento definidor do projeto. A forma externa é o objetivo primeiro da proposta, o sentido da construção.
Prejudicada a iluminação, dificultado o agenciamento, escravizando o espaço interno, mas cumprindo com sua proposta, Fernando Peixoto dá uma identidade arquitetônica própria dentro da neutralidade do espaço cidade. Pois foi concebida para preencher esta carência de referência urbana, personalizando uma arquitetura com poder de marca: Fernando Peixoto.
Uma população que anseia ser moderna e fazer arte do novo mundo, tentando alcançar a todo o custo o progresso, é quem consome esta arquitectura. Somos todos. Propõe-se o novo, enquanto diferente, a quem deseja ser atual. Não pretende alterar as relações com o espaço urbano de ruptura da neutralidade enquanto residual. Apenas produz uma arquitetura para ser consumida canalizando as carências desta cidade na produção de uma arquitetura própria, emblemática.
Peixoto trabalha suas fachadas como enormes telas de um volume único, de conteúdo conhecido. Geometrização de grandes fachadas planas potencializando os elementos de revestimentos. Fachadas escultóricas que sempre se abrem a grandes perspectivas urbanas, enfatizando sua função de marco. As aberturas, “mal necessário” da arquitectura, são absorvidas e dissimuladas enquanto vazios.
O novo que hoje é consumível. Uma nova estética de identificação, um fácil consumidor. O novo que vira moda. Um apartamento como todos os outros, uma fachada que não existe igual. A produção das aparências. Na época da aeróbica, do malhado, da cirurgia estética, dos chips e softs, das telecomunicações, das economias desnacionalizadas, do light, do clean. Época do burguês que consume qualidade, o burguês ilustrado.
Assim o êxito da arquitectura de Fernando Peixoto está no muro, a casca, no invólucro que veste seus edifícios, nesta parede que é o limite entre interior e exterior, não em seu conteúdo. Interiormente, a maneira moderna clássica de ver os espaços; externamente uma dissimulação do conteúdo em função de um efeito gráfico. Uma roupagem cujo acesso está vinculado a sua exclusividade.
Que ocorrerá em Salvador com a proliferação dos Peixotos e Peixotismos? Será o poder de saturação desta novidade?
Em Salvador, Fernando Peixoto foi quem melhor soube aproveitar essa tendência da arquitetura contemporânea, assumindo seu caráter gráfico e atuando no meio urbano como uma realidade em que desapareceu a preocupação com o lugar. Cidade que se faz de monumentos fechados em si mesmos que tentam firmar uma identidade própria e individual. É nesse contexto que seu trabalho adquire status de arquitetura do espetáculo.
Quando atua como designer do mercado imobiliário, sua produção é personalizada, tendo como base um usuário genérico. Ele estabelece uma identidade arquitetônica própria frente à neutralidade do espaço urbano. Dissocia a fachada de um edifício de apartamentos ou prédio de escritórios de seus compromissos com a abertura dos muros. Transforma a caixa exterior em pura expressão plástica, marcada por faixas e cores em escala urbana, criando sensações visuais de dobras e sombras, onde a princípio existem somente planos simples e lisos, usando a arquitetura como um recheio.
O êxito dessa arquitetura está na superfície que limita o interior e o exterior. Internamente, o arquiteto organiza plantas que atendem aos anseios do mercado; externamente, dissimula o conteúdo sob um efeito gráfico, uma roupagem que garante o sucesso do empreendimento, mesmo comprometendo a iluminação natural dos interiores, dificultando o agenciamento dos espaços, escravizando os ambientes. Um sistema gráfico que vem evoluindo nas sucessivas e superpostas experiências construídas. O próprio arquiteto não sabe onde chegará, mas já percebe o “barroquismo” do Centro Empresarial Previnor.
Quando atua como “amigo do rei”, como afirma o próprio Peixoto, no caso da residência Félix de Almeida, a simulação de cubos urbanos se transforma em espaço de fato. Aqui existe um cliente real, com manias, desejos e sonhos, para o qual o arquiteto projeta. Nesses projetos, já não são necessários os vários tons de cinza e cores vibrantes para criar grafismos e efeitos visuais; ao contrário, exploram-se as sombras naturais de volumes sobre o plano das fachadas.
Mas seu interesse é polemizar. Nesse sentido, o projeto da marina é um prato cheio a suscitar polêmica dentro dos órgãos que legislam sobre o espaço urbano de Salvador. Trata-se de uma intervenção urbana em zona histórica, cuja delicada situação determinou amplo estudo de visuais do entorno. Para o arquiteto, uma proposta capaz de dinamizar o decadente bairro do Comércio graças à grandiosidade da intervenção, com volumes identificáveis, à Fernando Peixoto. Um novo pedaço urbano que se acoplaria à encosta da cidade, onde a arquitetura seria uma conseqüência.
Críticos, acadêmicos e arquitetos baianos se surpreendem com a superficialidade dessa arquitetura, por não conseguirem ser inovadores dentro do vazio experimentado pela falta de uma modernidade plena. Uma arquitetura que se concretiza no efêmero, constantemente negada pela vanguarda, reafirmando-se como ícone dessa nova cidade gerada segundo leis de mercado.
Impermanência de memória
Na relação proposta memória/inconsciência X esquecimento/consciência, se encontra, talvez, um dos elementos urbanos que diferencia a personalidade brasileira de suas cidades das demais. A mobilidade, que muitas vezes é confundida com desordem. Uma característica que marca não somente o modo de ser urbano em Salvador, como também a impermanência de uma cultura da memória.
"A imobilidade, que permite o conhecimento, esquece a vida", ao passo que a mobilidade a reafirma. Uma cidade nova, uma cidade viva tende a ser uma cidade sem memória, ou seja, uma cidade que não se reafirma na estagnação de seus elementos, isso considerando a visão moderna de manter o esforço de recuperação da experiência do passado. Sua história é curta, sua busca é longa. Em contraposição, temos as cidades ricas de memória. Memórias tão fortes em suas histórias que as imobilizam. Assim ocorreu com a inesquecível cidade de Zora, que, por permanecer imóvel, se esvaiu.
A rigidez de perdurar na consciência faz com que sua existência se dissolva dentro de sua própria contradição, passando a ser à de um elemento morto. A cidade passa a reafirmar-se pelo culto ao passado, recriado na direção de tradições futuras. Saudade de futuro.
A nova ordem mundialA mobilidade das cidades brasileiras, caso específico de Salvador, faz com que a cidade mantenha-se viva e mutável. “Aqui tudo parece que é construção e já é ruína... Nada continua”. Um movimento que deixa de fora a cultura oficial e se reafirma nas periferias vivas, mutáveis. “Algo está fora da ordem, fora da nova ordem mundial”.
Salvador, uma das mais modernas cidades brasileiras, na opinião do geógrafo Milton Santos, ao considerar o fato de a cidade haver dado as costas para a cidade existente, reerguendo-se em um novo centro de negócios e serviços, independentemente do primeiro. Este novo espaço-cidade sem passado, seja por decisões políticas ou por necessidades físicas (não é o que importa), continua latente em sua maneira de existir. O tempo não se perde, mas também não se acumula. O que se tem é vida em seu instante.
A mesmo tempo que a cidade perde sua memória a cada dia, constitui uma vida nova a cada momento. Vive da produção de novas idéias que se somam no dia a dia do esquecimento. Recria-se sem a intenção de perdurar. Sustenta-se no novo e casual que muda a todo instante. Uma cidade rica em culturas emergentes e passageiras. Aqui, o folclore não se apoia na canonização de um rito; ao contrário, ele se revitaliza em suas adaptações no tempo, agregando novos elementos a cada instante, uma cultura forte, uma cultura insustentável, superficial. A memória estática não interessa. A memória que fica é transformada pela consciência, e o esquecimento a absorve. A identidade se reinventa todo dia. Falo que o academicismo de Edmilson Carvalho, ao analisar Hildegardes Vianna, não chega a compreender.
Memórias inconscientesA cidade se movimenta. Ela se desestrutura enquanto centro, deslizando pelas cumeadas: Terreiro, Pelourinho, Rua Chile, Politeama, Lapa... Iguatemi, sem uma preocupação com o que ficou construído no tempo. Momentos de prestígio distintos que deixam suas marcas construídas. Um espaço a ser reinventado por quem o reabilite. Espaços urbanos que, passados seus momentos áureos, são esquecidos enquanto ambientes a serem vividos por quem os concebeu e passam a fazer parte dessas inconscientes memórias. Na mobilidade urbana, falar de patrimônio é falar de uma tentativa institucional, pois nesta ambiência viva de produção cultural não resta espaço para que se cultue o passado ou, melhor dito, não se faz necessária a manutenção de uma memória dentro da emergência desse tipo de produção cultural.
Esta análise se reenfatiza quando se observa o estado dos arquivos públicos. Em um artigo do jornal A TARDE, “Salvador, uma cidade sem memória”, evidencia-se o desleixo que esses documentos sofrem no decorrer de sua existência. Um material quase em sua totalidade perdido nos sucessivos incêndios que sofreram os arquivos públicos da cidade. Os que resistiram estão guardados nos úmidos sótãos de antigas construções. Para a cultura preservacionista ocidental, é difícil compreender tais arbitrariedades com a vasta memória escrita. Entretanto, não existe uma intenção própria na cultura voltada para o preservar. Essa história passa a ser assunto para museu.
Enquanto se observa a proliferação de museus na Europa e EUA, uma cultura que se remonta a uma sólida cultura de passado, sendo considerada como a tipologia arquitetônica do fim de século (muito divulgada pelas revistas especializadas internacionais), no Brasil, particularmente na Bahia, passar a ser tema de museu é deixar de ser uma referência, enquanto vida, para pertencer ao cemitério dos assuntos de curiosidade do passado.
Trabalhando no vazioPostura coerente com um país que mergulhou de cara em seu inovador, em seu moderno, negando radicalmente a história. Preservar, no Brasil, é trabalhar no vazio. Faz parte de uma ilha institucional, uma busca arqueológica, que pretende sustentar uma história, ser pró-memória. A instituída restauração conforma o cenário simbólico a ser mantido como memória pela ordem dominante.
Desse modo, os museus não se sustentam pelo cidadão que compreende sua história, mas sim por um público que, por curiosidade, admira o passado. Os museus não são elementos de referência para a inovação da cultura existente, e sim respaldo institucional da memória oficial.
A força cultural baiana não surge do academicismo de sua intelectualidade, mas sim de sua periferia borbulhante. Uma cidade cheia de artistas, como disse Gerônimo. Artistas que não sabem conceituar sua arte ou não querem fazê-lo. Artistas que produzem arte sem o compromisso de perpetuá-la. Uma cidade tão pobre de críticos...
Críticos, acadêmicos, arquitetos que se surpreendem com a superficialidade da recente arquitetura baiana, por não conseguirem ser irresponsáveis e inovadores dentro do vazio experimentado pela falta de vivência de uma modernidade plena. Uma arquitetura que se concretiza no efêmero proposto por Fernando Peixoto, que, constantemente, é negada pela vanguarda e reafirmada como ícone desta nova cidade, possibilitada dentro das leis de mercado.
Esse movimento cultural, que tem hoje como expressão máxima a música, se sustenta na continuidade da mudança, onde tudo se experimenta e nada se consolida como verdade única, mantendo todas as origens e referências à sua disposição. A música é um espaço tecnicamente sofisticado, onde a mobilidade é permissível. A personalidade baiana exige uma dinâmica, que se encontra na música. Ou, quem sabe, talvez esteja na própria personalidade baiana a musicalidade. De qualquer sorte, uma cultura viva, mística, que emociona.
Fernando Peixoto, um sucesso gráfico
Convidado pelo Itamaraty para ser um dos dois representantes do Brasil na V Bienal de Arquitectura em Veneza, o arquitecto personalizada e própria. Um arquitecto que quer ser reconhecido como designer antes de tudo. Sua arquitetura, um espetáculo. Um trabalho muito criticado no início, mas hoje já se assume o poder que tiveram suas intervenções na cidade: plasticidade, grafismos e cores. A griffe Fernando Peixoto toma valor de destaque e seu nome passa a figurar como elemento de prestígio na hora da comercialização da construção, prática anteriormente nunca utilizada. O que esta arquitectura significa para ser capaz de suscitar tanta polêmica?
Salvador no contexto BrasilFundada para ser a capital da colônia Brasil, Salvador teve seu momento áureo no século XVIII, hoje com um centro antigo reconhecido pela UNESCO como patrimônio mundial do seu vasto centro barroco. Nos finais do século passado início deste, uma cidade de baixo crescimento frente às demais cidades brasileiras. Sofre o seu boom como cidade que dinamiza sua economia nos anos 60/70. Abre-se a novas áreas. Cresce, transforma-se.
Esta transformação seguirá a tendência da arquitectura brasileira, uma arquitectura que se fez moderna, a-história, universal. Fundamentos de uma arquitectura solidificada na forte corrente do positivismo, do progresso. É o edifício o grande contorno. Todo edifício passa a ter o potencial para ser um monumento. Perda da hierarquização da arquitetura dentro da cidade. Surge como proposta de um novo espaço para a cidade, a cidade do movimento, a cidade do circular. Para uns chamado de espaço residual por não formar o sentido de Lugar, para outros, espaço amorfo de um todo monumental dentro da democratização do construir. Para Sennett, uma conseqüência da linguagem que se aplica ao entorno, o desejo de ver o exterior como nulidade, algo carente de valor.
A arquitetura brasileira se afirmou na absorção e radicalização destas idéias. Somos a-históricos e criativos. Não só os nossos japoneses são geniais. Existe o compromisso brasileiro de assim sê-lo. Se fez realidade segundo os cânones de uma arquitectura que se dizia funcional e universal. Construiu-se uma utopia, pagou-se caro por ela, temo-la. Seu nome: Brasília. Um orgulho que transcende das críticas de sua própria existência, sustentando o selo: uma obra de arte moderna.
Só que o monumento não se faz por si só. O monumento é fruto do contexto urbano que o reafirma. Uma vez que se descontextualizam as referências, se homogeneiza o espaço. Espaço neutro que só é capaz de ser potencializado pelo consumo, ora na postura dos centros comerciais, ora como espaços limitados à experiência do turismo organizado como tal. Trivialização e redução da cidade como mero cenário suave para o cotidiano dentro do medo à exposição. Em Salvador, foi Fernando Peixoto quem melhor soube preencher esta nova necessidade do homem contemporâneo. Um dos motivos de seu êxito.
Arquitectura como suporteSalvador se faz sob estas influências. Inserido nessa realidade, Fernando Peixoto atua nesse contexto urbano, fazendo a releitura das vertentes arquitetônicas em voga. Uma realidade onde já desapareceu a preocupação pela qualidade do Lugar urbano, definindo-se, enquanto cidade, como espaços residuais de muitos marcos de referências, apenas arquitetônicos. Cidade que em seus crescimentos se faz de monumentos que tentam adquirir uma identidade própria fechados em si mesmos.
Querer dar uma personalidade a sua arquitectura, enquanto arquitecto, é o que leva Fernando Peixoto a ser um acontecimento dentro da imagem urbana. Uma personalidade de identificação. Sua proposta se otimiza frente às demais, que também buscam esta identidade, quando descobre a possibilidade de dissociar a fachada de um edifício de apartamentos ou salas de escritório de seus compromissos com as aberturas do muro. Transforma esta caixa exterior em uma pura expressão gráfica, de tamanho sublime, usando a arquitectura como um recheio, seu suporte.
Trabalha a fachada como expressão geométrica de faixas e cores em uma escala urbana. Não é a planta o que importa, pois esta seguirá sua função, entretanto será determinada pelo grafismo pretendido na fachada, elemento definidor do projeto. A forma externa é o objetivo primeiro da proposta, o sentido da construção.
Prejudicada a iluminação, dificultado o agenciamento, escravizando o espaço interno, mas cumprindo com sua proposta, Fernando Peixoto dá uma identidade arquitetônica própria dentro da neutralidade do espaço cidade. Pois foi concebida para preencher esta carência de referência urbana, personalizando uma arquitetura com poder de marca: Fernando Peixoto.
Uma população que anseia ser moderna e fazer arte do novo mundo, tentando alcançar a todo o custo o progresso, é quem consome esta arquitectura. Somos todos. Propõe-se o novo, enquanto diferente, a quem deseja ser atual. Não pretende alterar as relações com o espaço urbano de ruptura da neutralidade enquanto residual. Apenas produz uma arquitetura para ser consumida canalizando as carências desta cidade na produção de uma arquitetura própria, emblemática.
Peixoto trabalha suas fachadas como enormes telas de um volume único, de conteúdo conhecido. Geometrização de grandes fachadas planas potencializando os elementos de revestimentos. Fachadas escultóricas que sempre se abrem a grandes perspectivas urbanas, enfatizando sua função de marco. As aberturas, “mal necessário” da arquitectura, são absorvidas e dissimuladas enquanto vazios.
O novo que hoje é consumível. Uma nova estética de identificação, um fácil consumidor. O novo que vira moda. Um apartamento como todos os outros, uma fachada que não existe igual. A produção das aparências. Na época da aeróbica, do malhado, da cirurgia estética, dos chips e softs, das telecomunicações, das economias desnacionalizadas, do light, do clean. Época do burguês que consume qualidade, o burguês ilustrado.
Assim o êxito da arquitectura de Fernando Peixoto está no muro, a casca, no invólucro que veste seus edifícios, nesta parede que é o limite entre interior e exterior, não em seu conteúdo. Interiormente, a maneira moderna clássica de ver os espaços; externamente uma dissimulação do conteúdo em função de um efeito gráfico. Uma roupagem cujo acesso está vinculado a sua exclusividade.
Que ocorrerá em Salvador com a proliferação dos Peixotos e Peixotismos? Será o poder de saturação desta novidade?