Permissividade e Transgressão Lúdica da Imagem Urbana"Não há nada mais subversivo que a imagem, pois ela é o verdadeiro elemento perturbador da racionalidade dos sentidos"
Moniz Sodré
Há quase um década escrevi o texto "Axé Architecture – A pós-modernidade na Roma Negra" 1 e nele contextualizei, sem todavia enfatizar devidamente, o nome do autor, os aspectos mais perceptíveis da arquitetura de Fernando Peixoto referenciados apenas numa breve nota. Mesmo assim, fui alvo de impropérios por alguns colegas da academia que reprovaram minha atitude e questionavam, admirados, a razão pela qual havia feito aquela referência. Na época, o debate sobre a condição Pós-moderna - assim denominada por muitos autores em função da emergência de um conjunto de novos pressupostos culturais em evidência nos países hegemônicos desde o início da década de 60 - ocupou o ideário cultural e, entre nós, principalmente na academia, esse debate era bastante acirrado, embora já mostrasse nos países que lhe deram origem sinais de plena exaustão.
Durante Congresso Brasileiro de Arquitetos realizado em Belo Horizonte em 1985, tomou-se consciência, com bastante retardo do debate Moderno x Pós-moderno, e isso, particularmente nas academias onde a nova formação discursiva significava para alguns, como o autor deste texto, o advento de um novo paradigma e para outros, uma continuidade do moderno ou, até mesmo, uma simples impostura, um "pastiche". Justamente por isso, o debate tornou-se um fator de sobrevivência cultural. Vale ressaltar que nesse polêmico contexto, a palavra-chave deconstrução, visava então questionar o mito da arquitetura moderna, visando retirar dela a hegemonia, a importância e as limitações que os enunciados dessa arquitetura então promoviam na formação do arquiteto. Deconstruir não deveria significar destruir ou desmontar, mas caracterizar a perda hegemônica dos enunciados e narrativas da modernidade, e isto, frente a nova sensibilidade que estava emergindo resultante do amplo processo de transformações do mundo globalizado, do advento do consumismo generalizado, da sociedade do espetáculo, dos espaços de fluxos que expressavam os avanços tecnológicos em confronto com os espaços de lugares.
Justamente, no início dos anos 80, em plena ascensão das novas tendências deconstrutivistas tendo como alvo a arquitetura moderna, sob a égide do pós-modernismo em arquitetura [denominação esta que abrigava sob o mesmo teto um conjunto bastante heterogêneo de tendências e de expressões estéticas, fossem elas conservadoras ou novadoras], ocorreu a singular expressão da arquitetura de Fernando Peixoto. Acontecimento esse que se vincula mais diretamente aos fenômenos da percepção, isto é, da imagem urbana. Sob esse ângulo, a produção do arquiteto pode ser considerada bastante transgressiva quando analisada em relação aos padrões visuais transmitidos pelas edificações da arquitetura do movimento moderno.
Frente a essa presença no panorama da produção de arquitetura em nossa cidade, algumas indagações podem ser formuladas e, até mesmo, levantadas algumas hipóteses visando detectar quais os agenciamentos que motivaram essa opção estética do arquiteto em questão. Quais estímulos favoreceram esse acontecimento de indelével presença nas avenidas de vale da Cidade do Salvador? Que repercussão e alcance teve essa produção quando comparada à simultânea produção de exemplares do pós-modernismo de diferentes expressões e estilos de inspiração retrô (neo-clássico, eclético, colonial, rústico, mediterrâneo, decó, entre outras), e até mesmo, a produção tida como "high tech"? Tudo, então, sob a acirrada crítica promovida pela academia que não cansava de propagar em alto e bom som em relação à produção de arquitetura de Fernando Peixoto: "isto não é arquitetura", expressão que repercutia em salas de aulas. Enquanto isso, em relação às demais tendências eram as mesmas consideradas arquiteturas decadentes, salvo aquelas produzidas na cidade e que se aproximavam da expressão "regionalista" do arquiteto Assis Reis ou daquela "high tech" produzidas pelo arquiteto João Filgueiras, conhecido desde então por Lelé.
Tanto o senso comum quanto os textos literários fazem referências ao contexto cultural baiano, especificamente à Cidade do Salvador e, consensualmente, aludem ao que, convencionalmente, vem sendo chamado de “permissividade baiana”. Neste contexto, parafraseando o antropólogo Roberto Da Matta, talvez pudéssemos falar em ”dilema baiano”, no sentido que esse autor trata as práticas sociais (a arquitetura é uma delas) e em que tais práticas possuem conteúdos simbólicos e deixam de ter uma razão puramente funcional em relação aos valores dominantes. Antes pelo contrário, muitas dessas práticas possuem o sentido de inversão, de paradoxo, quebra de padrões, a exemplo do que ocorre por breve período durante o carnaval onde ocorre a permissividade e a transgressão expressando a inversão de valores estabelecidos. Segundo o mesmo autor, numa sociedade marcada pela opressão, a carnavalização da vida e de suas práticas tem um sentido altamente positivo, e isso, em decorrências dos anseios de liberação em resposta às relações de dominação que permeiam, de um modo geral, o quotidiano da grande maioria da população.
Essas noções, tanto a de permissividade quanto a de transgressão, tratando-se de uma cidade como Salvador, elas podem ser relacionadas às inúmeras manifestações que emanam da cultura-afro, isto é dos afrodescendentes [em torno de 80% da população da Cidade], as quais fazem contraponto a cultura ocidental. Bem se conhece quanto esta cultura tem descriminado, ao longo da historia, as manifestações artísticas e religiosas de origem africana. Descriminação essa, a exemplo das cores, tidas como primitivas, excessivamente fortes e utilizadas em combinações paradoxais ou relacionadas simbolicamente com o culto dos orixás. Também, essa descriminação passa pelos desenhos e arranjos decorativos de cunho geométrico contendo conteúdos figurativos simbólicos, os quais se entrelaçam em composições emblemáticas de difícil leitura para os não iniciados. Os cheiros, considerados demasiadamente fortes, densos e que não se identificam com discerníveis odores e suaves fragrâncias da cultura branca. Também, quanto às iguarias, as quais, embora consideradas indigestas, são reconhecidas por suas qualidades afrodisíacas. Enfim, os ritmos, tidos como primários e repetitivos e que, contudo mexem com a rigidez do corpo, promovendo seu molejo, evidenciando agilidade e maciez de gestos, produzindo diferenças em suas manifestações [carnaval, afoxés, trios, candomblé, etc.]. Essa incontrolável energia da cultura negra, convivendo, hoje, com a potente sonorização "high-tech" dos trios elétricos, [arquiteturas móveis, nômades], vem afirmando, cada vez mais, a instrumentalidade de percussão, elemento básico da musicalidade afro. Por tudo isso, considerando esses níveis de descriminação é que Caetano Veloso, contrariando o gosto hegemônico da elite soteropolitana, chamou esse conjunto de manifestações sensoriais da negritude, com absoluta justiça, de "Beleza Pura".
Na historiografia da arquitetura produzida no Brasil, quase nada se fala de edificações relacionadas com a cultura negra, salvo das senzalas, porões da escravidão e dos quilombos, verdadeiras "máquinas de guerra" sob a mira de "aparelhos de captura" do poder dominante. Apenas recentemente, espaços significativos da cultura-afro em nosso país ( os terreiros e quilombos] passaram a merecer a devida atenção no sentido de preservação da memória desses espaços, e isso, em decorrência dos movimentos sociais promovidos pelos afrodescendentes.
Por outro viés, vale salientar que simultaneamente a presença local desses estratos culturais específico herdados da cultura-afro, estava ocorrendo, em nível global no mundo, a contaminação da arquitetura pelo consumismo generalizado do "marketing", registrado por Robert Venturi desde o início dos anos 70 com seu livro" Learning from Las Vegas" 2. Nele, Venturi, releva o papel prioritário que estava assumindo a presença da propaganda, do anuncio, da publicidade sobreposta à edificação. Acontecimento esse de enorme repercussão na semiótica urbana, equivalente a um manifesto subversivo , uma transgressão aos pressupostos visuais e comunicativos da linguagem promovida pelo movimento da arquitetura moderna. Tratava-se do advento de uma permissividade até então inconcebível, fato esse que em termos mais explícitos enunciava o seguinte: a partir de agora, o anuncio, a publicidade, a comunicação visual, a imagem, a "pele" das edificações passam a ser elementos entre os mais importantes da arquitetura. Subordinando, assim, a arquitetura como pura exigência funcional e explícita de um programa, nos moldes assumidos pelo modernismo, subvertendo-a, adequando-a a conveniência e funcionamento do mercado: a arquitetura (entenda-se, suas fachadas) como mero suporte promocional. Uma imagem à venda numa sociedade sob a égide do capital. Todavia, tudo faz crer que o arquiteto Peixoto, sem a devida crítica e ironia que substanciava o discurso de Venturi, procurou atender de forma bastante singular ao apelo e às exigências especulativas do mercado imobiliário soteropolitano.
Trata-se de apelo à potencialidade de sedução das cores e formas, no sentido do design de mercadoria [e a arquitetura deve ser considerada, também, uma mercadoria no processo da especulação imobiliária]. Tal fato, assume diferentes conotações as quais se aproximam do tipo de edificação que Baudrillard denominou pós–modernismo comercial. Arquiteturas essas voltada prioritariamente para o valor de localização do imóvel, isto é, de suas inserções no tecido urbano, contando com o poder da imagem e podendo as mesmas pertencerem tanto a um repertório que recicla estilos (neo-clássico, colonial, decó, rústico, etc., atendendo aos desejos de uma clientela conservadora, saudosista), quanto à uma imprevisível composição de formas geométricas e cores no atendimento aos anseios daqueles que preferem, conceitualmente, a Diferença.
De regra, o que se constata na produção da arquitetura é a repetição sem diferença, ou então, a diferença sem conceito, pois a diferença pressupõe uma mudança de natureza, um acontecimento, uma efetiva criação. Um invólucro, em arquitetura pode ser considerado uma diferença, todavia, trata-se de um jogo de linguagem de superfície, uma diferença sem conceito. E isso, com mais razão, considerando que a arquitetura constitui uma "totalidade segmentaria" formada de um conjunto de elementos heterogêneos que coexistem, se conectam, se sobrepõem, se contaminam, mantêm entre eles temporalidades diferentes, pressupondo "máquinas desejantes", entre outros atributos. Elementos que, todavia, não se encaixam como o Todo e as partes no entendimento da Totalidade clássica. Quando essa totalidade segmentaria não muda de natureza, conclui-se que pode existir diferença, o que de fato há na arquitetura em questão, todavia, não podemos afirmar que a mesma, conceitualmente ele seja portadora de mudança, no sentido mais amplo do entendimento da arquitetura como acontecimento: mudança efetiva de natureza 3.
Esse "pós-modernismo" comercial em arquitetura de destinação prevalentemente de interesse privado, adotando tipologias, sistemas construtivos, instalações e equipamentos convencionais, tem priorizado os valores epidérmicos, a exemplo de embalagens, à guisa de gigantescos "out-door", e isso, em parceria com os setores produtivos da indústria de materiais de revestimentos destinados às edificações. No mais das vezes, nessas composições de superfícies que geram imagens, elas se encontram desvinculadas dos elementos mais constitutivos da própria arquitetura. Essa desvinculação da expressão da fachada de uma edificação de seus elementos constituintes ( percepção da estrutura, demarcação de pavimentos, fenestração, visualização da hierarquia dos espaços servidos e daqueles de serviço, etc.), bem como, um conjunto de parciais ambiguidades tem caracterizado muitos exemplares da história da arquitetura. Entretanto, essa desvinculação quase total, encontrada em muitos exemplos da produção do arquiteto, não deve significar apenas uma questão de desvinculação ou de vinculação. Ela não se esgota nessa colocação dual, tão criticada em decorrência dos supergraphics adotados em suas fachadas e considerados inconsequentes. Provavelmente, essa atitude entendida como transgressão lúdica, encontra num viés antropológico um entendimento mais claro, à exemplo do que consideramos anteriormente.
Vale lembrar, que de certa forma, o ensino e a prática de arquitetura constitui uma “máquina abstrata binária”, contando com a forma de pensar arborescente, isto é, um conjunto de enunciados (as diversas disciplinas) codificados e sobrecodificados, efetuados pelo Aparelho de Estado (leis e delegações destinadas às instituições - MEC/ Universidades, CONFEA/ CREAS que acabam aplicando tais máquinas) e que tem na metáfora árvore-estrutura o modelo de pensar. Independente do nível de criatividade que se pressupõe ou se atinge nas práticas arquitetônicas, existe um senso comum generalizado, particularmente, entre os docente os quais não admitem conviver com paradoxos, contrariando lógicas estabelecidas. Há, evidentemente exceções. Para a grande maioria dos professores e arquitetos, na época, engajados nas práticas de arquitetura, o conjunto arquitetônico do autor, denominado Cidadela, foi considerado "uma brincadeira de mau gosto, uma negação da verdadeira arquitetura". Entretanto, tal conjunto arquitetônico surpreendeu a cidade, o cidadão comum, os pedestres, os motoristas. Para a academia e o mercado imobiliário dominante e conservador tal empreendimento foi considerado um despropósito, um absurdo. Para o mercado emergente e de menor tradição imobiliária, provavelmente um achado. Para o senso comum que constitui a maioria da população, a imagem criada por Fernando Peixoto com suas arquiteturas, um estímulo visual na paisagem urbana de Salvador, uma alegria colorida.
Não há como tanto questionar essa expressão de arquitetura como pós-modernismo comercial ou cooptado, segundo a expressão de Baudrillard acima referida, e isso, em decorrência da carência cada vez maior de edificações públicas, fazendo com que a arquitetura de natureza privada, possua, inevitavelmente, seja ela qual for, uma forte conotação comercial, adequada a circunstâncias locais e níveis específicos de desempenho do capital especulativo, no atendimentos à diferenciadas clientelas. Numa cidade terceiro-mundista como Salvador, definida por sociólogos como uma "grande favela com bolsões de riqueza", melhor seria, talvez, falar nesse processo de contestação da produção da arquitetura de Fernando Peixoto, de emergência de uma estética pop de matriz africana, uma espécie de transgressão lúdica, no sentido positivo de carnavalização da vida, como reação à ordem estabelecida,colocando “o mundo de cabeça para baixo”, evocando, assim, a liberação das amarras impostas pelo conformismo canônico do movimento moderno de arquitetura. Portanto, não é mais possível num mundo globalizado, comparar contextos culturais tão diferenciados sob a égide da homogeneização de expressões arquitetônicas, ditadas por países hegemônicos que exportam o que é conveniente ou não fazer em arquitetura.
Vale salientar como essa arquitetura proliferou em muitas localidades do país, e isso, justamente pela sua inquestionável singularidade da imagem e do impacto que a mesma efetivamente promoveu. Não sem razão, a obra do arquiteto foi escolhida pelo Itamaraty para representar o Brasil na Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza. Hoje, passada duas décadas, apesar da efemeridade de expressões artísticas da contemporaneidade, a produção do jovem arquiteto de então, consegue, ainda hoje, já maduro, permanecer fiel aos seus propósitos iniciais, reciclando-os criativamente, a exemplo de sua mais recente obra que o autor deste texto apelidou de "totem" da avenida Juracy Magalhães Jr. Hoje, se suas obras não possuem mais o mesmo e forte impacto que inicialmente provocaram na paisagem urbana, contudo, elas criaram no contexto cultural baiano, um traço, no mínimo, inconfundível.
Independente da atitude contra os parâmetros estéticos ditados pelo ensino acadêmico, no sentido acima referido do confronto do pós-modernismo, a nossa hipótese principal prende-se, não apenas ao condicionamento geral do novo estágio cultural do mundo globalizado, mas ela possui outra e importante conotação. Acredito que o arquiteto procurou, consciente ou inconscientemente, captar e entender na superfícies de suas arquiteturas, aquilo que chamamos anteriormente de "dilema baiano", o qual tem na permissividade e na transgressão lúdica, a força, a energia, o axé, de sua presença. Elementos esses tão enraizados nas práticas da maioria da população desta Cidade do Salvador. Cidade que abriga uma população majoritária, historicamente tão subjugada, a qual tem procurado com suas ilusões, paixões e alegrias, colorir, carnavalizar o quotidiano, e isso na positividade de suas intenções, sejam elas conscientes ou não, procurando compensar as agruras ditadas pela ordem estabelecida, contaminando através de suas contagiantes formas de expressão estética a vida cultural da cidade.
Não há como entender a produção do arquiteto Fernando Peixoto desvinculada da nova condição cultural contemporânea ("pós-moderna") que então se propagava e se propaga pelo mundo a fora, no âmbito do processo de globalização. Entretanto, tal pressuposto não é suficiente para caracterizar a sua produção. A singularidade dessa produção deve ser encontrada, também, nas energias que emanam da suposição do “dilema baiano”. Somente através dele podemos entender sua sedução para a maioria da população desta cidade, bem como, compreender as críticas sem reserva da elite cultural e acadêmica à essa produção de arquitetura.
Vale registrar que na historiografia da arquitetura baiana do final do século 20, a produção de Fernando Peixoto, descumprindo os preceitos fundamentais ditados pelo movimento da arquitetura moderna, em termos de composições de suas edificações, consciente ou inconscientemente, faz aflorar, afirmar e transmitir, através de uma geometria colorida que as reveste, à guisa de uma pele. Trata-se de um sentimento, uma percepção, próxima ou equivalente à permissividade e a transgressão lúdica que emana da singular cultura local, uma provável contaminação da expressão que encontramos nas manifestações mais populares desta Cidade do Salvador, a qual por sua potencialidade, energia e reconhecida singularidade, vem merecendo ser chamada de “Roma negra”.
Será essa hipótese válida?
Ao leitor a palavra.
Pasqualino Romano Magnavita1 Texto de maio de 1994, publicado na revista Arquitetura e Urbanismo-AU nº 60, p.82-85, jun/jul/1995. Inicialmente o texto havia sido enviado a revista Projeto qual colocou algumas condições para sua publicação e às quais o autor não aceitou.
2 Venturi, R – Brown, D.Scott – Izenour, S.—Leaning from Las Vegas, Massachusetts,ed. M.I.T, 1972.
3 "Diferença e Repetição" obra filosófica de Gilles Deleuze, São Paulo, ed. Graal, 1988.
Moniz Sodré
Há quase um década escrevi o texto "Axé Architecture – A pós-modernidade na Roma Negra" 1 e nele contextualizei, sem todavia enfatizar devidamente, o nome do autor, os aspectos mais perceptíveis da arquitetura de Fernando Peixoto referenciados apenas numa breve nota. Mesmo assim, fui alvo de impropérios por alguns colegas da academia que reprovaram minha atitude e questionavam, admirados, a razão pela qual havia feito aquela referência. Na época, o debate sobre a condição Pós-moderna - assim denominada por muitos autores em função da emergência de um conjunto de novos pressupostos culturais em evidência nos países hegemônicos desde o início da década de 60 - ocupou o ideário cultural e, entre nós, principalmente na academia, esse debate era bastante acirrado, embora já mostrasse nos países que lhe deram origem sinais de plena exaustão.
Durante Congresso Brasileiro de Arquitetos realizado em Belo Horizonte em 1985, tomou-se consciência, com bastante retardo do debate Moderno x Pós-moderno, e isso, particularmente nas academias onde a nova formação discursiva significava para alguns, como o autor deste texto, o advento de um novo paradigma e para outros, uma continuidade do moderno ou, até mesmo, uma simples impostura, um "pastiche". Justamente por isso, o debate tornou-se um fator de sobrevivência cultural. Vale ressaltar que nesse polêmico contexto, a palavra-chave deconstrução, visava então questionar o mito da arquitetura moderna, visando retirar dela a hegemonia, a importância e as limitações que os enunciados dessa arquitetura então promoviam na formação do arquiteto. Deconstruir não deveria significar destruir ou desmontar, mas caracterizar a perda hegemônica dos enunciados e narrativas da modernidade, e isto, frente a nova sensibilidade que estava emergindo resultante do amplo processo de transformações do mundo globalizado, do advento do consumismo generalizado, da sociedade do espetáculo, dos espaços de fluxos que expressavam os avanços tecnológicos em confronto com os espaços de lugares.
Justamente, no início dos anos 80, em plena ascensão das novas tendências deconstrutivistas tendo como alvo a arquitetura moderna, sob a égide do pós-modernismo em arquitetura [denominação esta que abrigava sob o mesmo teto um conjunto bastante heterogêneo de tendências e de expressões estéticas, fossem elas conservadoras ou novadoras], ocorreu a singular expressão da arquitetura de Fernando Peixoto. Acontecimento esse que se vincula mais diretamente aos fenômenos da percepção, isto é, da imagem urbana. Sob esse ângulo, a produção do arquiteto pode ser considerada bastante transgressiva quando analisada em relação aos padrões visuais transmitidos pelas edificações da arquitetura do movimento moderno.
Frente a essa presença no panorama da produção de arquitetura em nossa cidade, algumas indagações podem ser formuladas e, até mesmo, levantadas algumas hipóteses visando detectar quais os agenciamentos que motivaram essa opção estética do arquiteto em questão. Quais estímulos favoreceram esse acontecimento de indelével presença nas avenidas de vale da Cidade do Salvador? Que repercussão e alcance teve essa produção quando comparada à simultânea produção de exemplares do pós-modernismo de diferentes expressões e estilos de inspiração retrô (neo-clássico, eclético, colonial, rústico, mediterrâneo, decó, entre outras), e até mesmo, a produção tida como "high tech"? Tudo, então, sob a acirrada crítica promovida pela academia que não cansava de propagar em alto e bom som em relação à produção de arquitetura de Fernando Peixoto: "isto não é arquitetura", expressão que repercutia em salas de aulas. Enquanto isso, em relação às demais tendências eram as mesmas consideradas arquiteturas decadentes, salvo aquelas produzidas na cidade e que se aproximavam da expressão "regionalista" do arquiteto Assis Reis ou daquela "high tech" produzidas pelo arquiteto João Filgueiras, conhecido desde então por Lelé.
Tanto o senso comum quanto os textos literários fazem referências ao contexto cultural baiano, especificamente à Cidade do Salvador e, consensualmente, aludem ao que, convencionalmente, vem sendo chamado de “permissividade baiana”. Neste contexto, parafraseando o antropólogo Roberto Da Matta, talvez pudéssemos falar em ”dilema baiano”, no sentido que esse autor trata as práticas sociais (a arquitetura é uma delas) e em que tais práticas possuem conteúdos simbólicos e deixam de ter uma razão puramente funcional em relação aos valores dominantes. Antes pelo contrário, muitas dessas práticas possuem o sentido de inversão, de paradoxo, quebra de padrões, a exemplo do que ocorre por breve período durante o carnaval onde ocorre a permissividade e a transgressão expressando a inversão de valores estabelecidos. Segundo o mesmo autor, numa sociedade marcada pela opressão, a carnavalização da vida e de suas práticas tem um sentido altamente positivo, e isso, em decorrências dos anseios de liberação em resposta às relações de dominação que permeiam, de um modo geral, o quotidiano da grande maioria da população.
Essas noções, tanto a de permissividade quanto a de transgressão, tratando-se de uma cidade como Salvador, elas podem ser relacionadas às inúmeras manifestações que emanam da cultura-afro, isto é dos afrodescendentes [em torno de 80% da população da Cidade], as quais fazem contraponto a cultura ocidental. Bem se conhece quanto esta cultura tem descriminado, ao longo da historia, as manifestações artísticas e religiosas de origem africana. Descriminação essa, a exemplo das cores, tidas como primitivas, excessivamente fortes e utilizadas em combinações paradoxais ou relacionadas simbolicamente com o culto dos orixás. Também, essa descriminação passa pelos desenhos e arranjos decorativos de cunho geométrico contendo conteúdos figurativos simbólicos, os quais se entrelaçam em composições emblemáticas de difícil leitura para os não iniciados. Os cheiros, considerados demasiadamente fortes, densos e que não se identificam com discerníveis odores e suaves fragrâncias da cultura branca. Também, quanto às iguarias, as quais, embora consideradas indigestas, são reconhecidas por suas qualidades afrodisíacas. Enfim, os ritmos, tidos como primários e repetitivos e que, contudo mexem com a rigidez do corpo, promovendo seu molejo, evidenciando agilidade e maciez de gestos, produzindo diferenças em suas manifestações [carnaval, afoxés, trios, candomblé, etc.]. Essa incontrolável energia da cultura negra, convivendo, hoje, com a potente sonorização "high-tech" dos trios elétricos, [arquiteturas móveis, nômades], vem afirmando, cada vez mais, a instrumentalidade de percussão, elemento básico da musicalidade afro. Por tudo isso, considerando esses níveis de descriminação é que Caetano Veloso, contrariando o gosto hegemônico da elite soteropolitana, chamou esse conjunto de manifestações sensoriais da negritude, com absoluta justiça, de "Beleza Pura".
Na historiografia da arquitetura produzida no Brasil, quase nada se fala de edificações relacionadas com a cultura negra, salvo das senzalas, porões da escravidão e dos quilombos, verdadeiras "máquinas de guerra" sob a mira de "aparelhos de captura" do poder dominante. Apenas recentemente, espaços significativos da cultura-afro em nosso país ( os terreiros e quilombos] passaram a merecer a devida atenção no sentido de preservação da memória desses espaços, e isso, em decorrência dos movimentos sociais promovidos pelos afrodescendentes.
Por outro viés, vale salientar que simultaneamente a presença local desses estratos culturais específico herdados da cultura-afro, estava ocorrendo, em nível global no mundo, a contaminação da arquitetura pelo consumismo generalizado do "marketing", registrado por Robert Venturi desde o início dos anos 70 com seu livro" Learning from Las Vegas" 2. Nele, Venturi, releva o papel prioritário que estava assumindo a presença da propaganda, do anuncio, da publicidade sobreposta à edificação. Acontecimento esse de enorme repercussão na semiótica urbana, equivalente a um manifesto subversivo , uma transgressão aos pressupostos visuais e comunicativos da linguagem promovida pelo movimento da arquitetura moderna. Tratava-se do advento de uma permissividade até então inconcebível, fato esse que em termos mais explícitos enunciava o seguinte: a partir de agora, o anuncio, a publicidade, a comunicação visual, a imagem, a "pele" das edificações passam a ser elementos entre os mais importantes da arquitetura. Subordinando, assim, a arquitetura como pura exigência funcional e explícita de um programa, nos moldes assumidos pelo modernismo, subvertendo-a, adequando-a a conveniência e funcionamento do mercado: a arquitetura (entenda-se, suas fachadas) como mero suporte promocional. Uma imagem à venda numa sociedade sob a égide do capital. Todavia, tudo faz crer que o arquiteto Peixoto, sem a devida crítica e ironia que substanciava o discurso de Venturi, procurou atender de forma bastante singular ao apelo e às exigências especulativas do mercado imobiliário soteropolitano.
Trata-se de apelo à potencialidade de sedução das cores e formas, no sentido do design de mercadoria [e a arquitetura deve ser considerada, também, uma mercadoria no processo da especulação imobiliária]. Tal fato, assume diferentes conotações as quais se aproximam do tipo de edificação que Baudrillard denominou pós–modernismo comercial. Arquiteturas essas voltada prioritariamente para o valor de localização do imóvel, isto é, de suas inserções no tecido urbano, contando com o poder da imagem e podendo as mesmas pertencerem tanto a um repertório que recicla estilos (neo-clássico, colonial, decó, rústico, etc., atendendo aos desejos de uma clientela conservadora, saudosista), quanto à uma imprevisível composição de formas geométricas e cores no atendimento aos anseios daqueles que preferem, conceitualmente, a Diferença.
De regra, o que se constata na produção da arquitetura é a repetição sem diferença, ou então, a diferença sem conceito, pois a diferença pressupõe uma mudança de natureza, um acontecimento, uma efetiva criação. Um invólucro, em arquitetura pode ser considerado uma diferença, todavia, trata-se de um jogo de linguagem de superfície, uma diferença sem conceito. E isso, com mais razão, considerando que a arquitetura constitui uma "totalidade segmentaria" formada de um conjunto de elementos heterogêneos que coexistem, se conectam, se sobrepõem, se contaminam, mantêm entre eles temporalidades diferentes, pressupondo "máquinas desejantes", entre outros atributos. Elementos que, todavia, não se encaixam como o Todo e as partes no entendimento da Totalidade clássica. Quando essa totalidade segmentaria não muda de natureza, conclui-se que pode existir diferença, o que de fato há na arquitetura em questão, todavia, não podemos afirmar que a mesma, conceitualmente ele seja portadora de mudança, no sentido mais amplo do entendimento da arquitetura como acontecimento: mudança efetiva de natureza 3.
Esse "pós-modernismo" comercial em arquitetura de destinação prevalentemente de interesse privado, adotando tipologias, sistemas construtivos, instalações e equipamentos convencionais, tem priorizado os valores epidérmicos, a exemplo de embalagens, à guisa de gigantescos "out-door", e isso, em parceria com os setores produtivos da indústria de materiais de revestimentos destinados às edificações. No mais das vezes, nessas composições de superfícies que geram imagens, elas se encontram desvinculadas dos elementos mais constitutivos da própria arquitetura. Essa desvinculação da expressão da fachada de uma edificação de seus elementos constituintes ( percepção da estrutura, demarcação de pavimentos, fenestração, visualização da hierarquia dos espaços servidos e daqueles de serviço, etc.), bem como, um conjunto de parciais ambiguidades tem caracterizado muitos exemplares da história da arquitetura. Entretanto, essa desvinculação quase total, encontrada em muitos exemplos da produção do arquiteto, não deve significar apenas uma questão de desvinculação ou de vinculação. Ela não se esgota nessa colocação dual, tão criticada em decorrência dos supergraphics adotados em suas fachadas e considerados inconsequentes. Provavelmente, essa atitude entendida como transgressão lúdica, encontra num viés antropológico um entendimento mais claro, à exemplo do que consideramos anteriormente.
Vale lembrar, que de certa forma, o ensino e a prática de arquitetura constitui uma “máquina abstrata binária”, contando com a forma de pensar arborescente, isto é, um conjunto de enunciados (as diversas disciplinas) codificados e sobrecodificados, efetuados pelo Aparelho de Estado (leis e delegações destinadas às instituições - MEC/ Universidades, CONFEA/ CREAS que acabam aplicando tais máquinas) e que tem na metáfora árvore-estrutura o modelo de pensar. Independente do nível de criatividade que se pressupõe ou se atinge nas práticas arquitetônicas, existe um senso comum generalizado, particularmente, entre os docente os quais não admitem conviver com paradoxos, contrariando lógicas estabelecidas. Há, evidentemente exceções. Para a grande maioria dos professores e arquitetos, na época, engajados nas práticas de arquitetura, o conjunto arquitetônico do autor, denominado Cidadela, foi considerado "uma brincadeira de mau gosto, uma negação da verdadeira arquitetura". Entretanto, tal conjunto arquitetônico surpreendeu a cidade, o cidadão comum, os pedestres, os motoristas. Para a academia e o mercado imobiliário dominante e conservador tal empreendimento foi considerado um despropósito, um absurdo. Para o mercado emergente e de menor tradição imobiliária, provavelmente um achado. Para o senso comum que constitui a maioria da população, a imagem criada por Fernando Peixoto com suas arquiteturas, um estímulo visual na paisagem urbana de Salvador, uma alegria colorida.
Não há como tanto questionar essa expressão de arquitetura como pós-modernismo comercial ou cooptado, segundo a expressão de Baudrillard acima referida, e isso, em decorrência da carência cada vez maior de edificações públicas, fazendo com que a arquitetura de natureza privada, possua, inevitavelmente, seja ela qual for, uma forte conotação comercial, adequada a circunstâncias locais e níveis específicos de desempenho do capital especulativo, no atendimentos à diferenciadas clientelas. Numa cidade terceiro-mundista como Salvador, definida por sociólogos como uma "grande favela com bolsões de riqueza", melhor seria, talvez, falar nesse processo de contestação da produção da arquitetura de Fernando Peixoto, de emergência de uma estética pop de matriz africana, uma espécie de transgressão lúdica, no sentido positivo de carnavalização da vida, como reação à ordem estabelecida,colocando “o mundo de cabeça para baixo”, evocando, assim, a liberação das amarras impostas pelo conformismo canônico do movimento moderno de arquitetura. Portanto, não é mais possível num mundo globalizado, comparar contextos culturais tão diferenciados sob a égide da homogeneização de expressões arquitetônicas, ditadas por países hegemônicos que exportam o que é conveniente ou não fazer em arquitetura.
Vale salientar como essa arquitetura proliferou em muitas localidades do país, e isso, justamente pela sua inquestionável singularidade da imagem e do impacto que a mesma efetivamente promoveu. Não sem razão, a obra do arquiteto foi escolhida pelo Itamaraty para representar o Brasil na Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza. Hoje, passada duas décadas, apesar da efemeridade de expressões artísticas da contemporaneidade, a produção do jovem arquiteto de então, consegue, ainda hoje, já maduro, permanecer fiel aos seus propósitos iniciais, reciclando-os criativamente, a exemplo de sua mais recente obra que o autor deste texto apelidou de "totem" da avenida Juracy Magalhães Jr. Hoje, se suas obras não possuem mais o mesmo e forte impacto que inicialmente provocaram na paisagem urbana, contudo, elas criaram no contexto cultural baiano, um traço, no mínimo, inconfundível.
Independente da atitude contra os parâmetros estéticos ditados pelo ensino acadêmico, no sentido acima referido do confronto do pós-modernismo, a nossa hipótese principal prende-se, não apenas ao condicionamento geral do novo estágio cultural do mundo globalizado, mas ela possui outra e importante conotação. Acredito que o arquiteto procurou, consciente ou inconscientemente, captar e entender na superfícies de suas arquiteturas, aquilo que chamamos anteriormente de "dilema baiano", o qual tem na permissividade e na transgressão lúdica, a força, a energia, o axé, de sua presença. Elementos esses tão enraizados nas práticas da maioria da população desta Cidade do Salvador. Cidade que abriga uma população majoritária, historicamente tão subjugada, a qual tem procurado com suas ilusões, paixões e alegrias, colorir, carnavalizar o quotidiano, e isso na positividade de suas intenções, sejam elas conscientes ou não, procurando compensar as agruras ditadas pela ordem estabelecida, contaminando através de suas contagiantes formas de expressão estética a vida cultural da cidade.
Não há como entender a produção do arquiteto Fernando Peixoto desvinculada da nova condição cultural contemporânea ("pós-moderna") que então se propagava e se propaga pelo mundo a fora, no âmbito do processo de globalização. Entretanto, tal pressuposto não é suficiente para caracterizar a sua produção. A singularidade dessa produção deve ser encontrada, também, nas energias que emanam da suposição do “dilema baiano”. Somente através dele podemos entender sua sedução para a maioria da população desta cidade, bem como, compreender as críticas sem reserva da elite cultural e acadêmica à essa produção de arquitetura.
Vale registrar que na historiografia da arquitetura baiana do final do século 20, a produção de Fernando Peixoto, descumprindo os preceitos fundamentais ditados pelo movimento da arquitetura moderna, em termos de composições de suas edificações, consciente ou inconscientemente, faz aflorar, afirmar e transmitir, através de uma geometria colorida que as reveste, à guisa de uma pele. Trata-se de um sentimento, uma percepção, próxima ou equivalente à permissividade e a transgressão lúdica que emana da singular cultura local, uma provável contaminação da expressão que encontramos nas manifestações mais populares desta Cidade do Salvador, a qual por sua potencialidade, energia e reconhecida singularidade, vem merecendo ser chamada de “Roma negra”.
Será essa hipótese válida?
Ao leitor a palavra.
Pasqualino Romano Magnavita1 Texto de maio de 1994, publicado na revista Arquitetura e Urbanismo-AU nº 60, p.82-85, jun/jul/1995. Inicialmente o texto havia sido enviado a revista Projeto qual colocou algumas condições para sua publicação e às quais o autor não aceitou.
2 Venturi, R – Brown, D.Scott – Izenour, S.—Leaning from Las Vegas, Massachusetts,ed. M.I.T, 1972.
3 "Diferença e Repetição" obra filosófica de Gilles Deleuze, São Paulo, ed. Graal, 1988.